domingo, 8 de junho de 2014

NÃO TE DEIXES DE AVENTURAS [1]

Artigo redigido por António Machado Vaz*   
AMV11|2013-14 

Ao contrário dos pobres - cujos pilares de vida foram devastados nos últimos anos pela realidade e que, cada vez mais, fazem um esforço tremendo para pagar as contas da água e da luz a tempo e horas ou comer um bife - a classe média/alta lusitana vive ancorada em mitos.

Casa grande com garagem para 3 carros e imensos halls, na Foz ou na Lapa, Lexus ou BMW, miúdos nos colégios privados, férias na neve (Chamonix), férias de água quente numa qualquer ilha das Caraíbas, roupa de marca, relógios daqueles franceses com 3 nomes, almoços nos restaurantes da moda (a € 100 por cabeça), uma parafernália indizovel de gadgets, TV Cabo.

O que me surpreende, quando analiso e penso na vida dos meus amigos muito bem sucedidos lá fora, que trabalham em gabinetes 3x2m na MTV em Los Angeles, que moram em casas com 60 m2 no Harlém, em Nova York, que trabalham na Goldman Sachs mas se deslocam de metro. 

Obviamente que as coisas têm importância relativa consoante a idade, o que já se conseguiu, os planos de vida, os hábitos locais, etc.

Na minha circunstância actual (com cancro), pensar o sentido da vida faz um pouco mais de sentido do que para a maioria das pessoas. Olhando para trás, só fica a pergunta: “Viveste a vida que pensaste, quiseste, escolheste?

A vida deste segundo grupo que falei é uma vida consciente? É a vida que eles determinaram que seria, a que os faria mais felizes?

Imaginemos por um momento uma família feliz: pai, José, Engenheiro de sistemas na PT (2.500 a 3.000 euros por mês), mãe professora, filhos bons alunos, sem problemas. Conseguem ser felizes encarando um futuro em que os dias se repetem, sempre iguais?

Um dia, o pai chega a casa, junta a família e diz: “Olhem, não gosto do que faço 10 horas por dia, sou infelicíssimo, perdi o líbido, tomo quilos de pastilhas para dormir, não me sinto bem, a minha vida não faz sentido. Toda a vida quis ser dono do meu tempo, quis usar o tempo para fazer coisas diferentes, para ter uma vida rica, cheia de sentido, estou-me a cagar prós óculos de marca e para as gravatas XPTO. Quero apenas ser dono de mim e estar mais tempo convosco e fazer coisas novas. Concorri e fui aceite no liceu da Amadora. Fiz contas e, se vendermos a casa e formos viver para um T2 na Rinchoa, conseguimos viver acima da sobrevivência e eu poderei chegar a casa mais cedo e brincar com os miúdos; poderei finalmente aprender a tocar viola – velho sonho de 30 anos; poderei correr e pôr-me em forma; poderei colaborar no projecto dos “sem-abrigo” locais em que a vossa mãe sempre quis participar – vamos participar juntos… Materialmente, para todos, a vida não será tão abundante (acabou-se o Nesquik, a Sport TV e a neve) mas estaremos muito mais tempo juntos, de melhor humor. Claro que haverá menos Urban e ténis Adidas – mas por cá continuarão as musicas, os livros, as conversas, mais jogos de futebol. Começaremos todos a pintar, mantêm-se os jantares com amigos (agora em casa, em vez de no restaurante). E o Pedro Nunes é um bom liceu…

Como somos tão facilmente capazes de recusar a felicidade?

Melhor: porque é que ninguém, conhecendo a sua matriz de felicidade, é capaz de mudar de vida?

Esta história é uma ilustração incompleta. Teremos de levar em consideração muitos outros factores e, obviamente, o que querem a mulher e os filhos, os amigos, o resto da família. Mas digam lá a sério: a alternativa de felicidade apresentada não parece irresistível? Estatisticamente, porém, quantos mudam?

Eu conheci uma ou duas pessoas… e mesmo assim, com risco limitado.

Há 3 razões para não mudarmos: não somos capazes de desenhar um modelo de vida novo; tendo tudo, não percebemos qual é o incentivo à mudança; tememos cansar-nos do que ainda nem sequer experimentamos. “E se depois me farto da guitarra?” Assim, deixamo-nos contaminar pela resposta dos grupos de referência e pelas nossas circunstâncias, além da desconfiança que geraríamos nos outros, esses que naturalmente se afastariam dos novos freaks do bairro… Aceitamos a frase: DEIXA-TE DE AVENTURAS…

[1] Último texto de Manuel Forjaz para a revista “Sábado”, enviado por ele um dia antes de morrer, em casa, no dia 6 de Abril de 2014 (texto publicado na edição de 10 de Abril de 2014). A sua vida mudou por causa do envelope azul que lhe foi entregue no hospital CUF, em Março de 2010. Manuel Forjaz, então com 47 anos, não fumador, ficou a saber que tinha um nódulo no pulmão esquerdo. Quando recebeu a noticia do cancro, o empresário não chorou, como garantiu na sua auto-biografia “Nunca te distraias da Vida”, lançada em Fevereiro passado. Pensou no pai, Nuno, e no irmão mais velho, Gonçalo, ambos vitimas de cancro: o primeiro morreu em Setembro de 2006, o segundo em Março de 2012. “Manel” - como era tratado pelos mais próximos – manteve a doença em segredo até 17 de Maio de 2010, quando escreveu uma carta aos amigos a revelar que afinal não estivera de férias, em Xangai, e que não era um super-homem. Estivera retirado, a receber mais uma dose de quimioterapia que o deixara debilitado. Nas conferências que dava pelo país, fazia sempre uma piada. “Se precisarem de dinheiro, liguem. Se precisarem de trabalho, liguem. Mas eu sei que vocês não vão ligar. Estão todos gordos!” Como disseram os amigos no dia do seu funeral, Manel “era uma carta fora do baralho”.
  
* Colaborador nas publicações do Blogue desde Outubro de 2013.